quarta-feira, março 28, 2007

VÁ ESTUDAR, PRESIDENTE!


Peço desculpas por voltar a este assunto. Mas creio que se trata de algo da maior gravidade e importância para o Brasil. Na verdade, considero que é mesmo a coisa mais grave e importante a respeito deste governo que aí está. Mais do que o mensalão. Mais do que Marcos Valério. Mais do que o apagão aéreo. Mais do que os ataques do PCC em São Paulo. Mais do que a redução da maioridade penal. Mais do que as declarações racistas da Ministra da Igualdade Racial, para quem negro odiar branco não é racismo.

O Presidente Lula precisa voltar para a escola. Rápido. Urgente.

Antes que alguém diga que este é só mais um texto para malhar nosso Presidente, cujas poucas luzes são louvadas entre nós por intelectuais que acham bonito um Chefe de Estado proclamar as virtudes da própria ignorância, faço questão de deixar claro que não se trata de nada disso. Muito pelo contrário. O que desejo é ajudá-lo, fazê-lo abrir os olhos para algo preocupante. Algo que não diz respeito, enfim, a ele somente, mas a todos nós.

Não é segredo para ninguém que Lula estudou só até a 4a série primária. Também ninguém ignora que, por motivos materiais, teve de abandonar cedo a escola. Ele gosta de repetir isso em seus discursos. Até aí, sua trajetória é igual a de tantos brasileiros, migrantes pobres como um dia foi ele, cuja mãe, como ele disse certa vez, em mais uma de suas gafes lingüísticas, "nasceu analfabeta". Depois, virou Lula, o líder metalúrgico, e Lula, o dirigente do PT. Hoje é Sua Excelência, Luiz Inácio Lula da Silva, o Presidente da República. Até aí, nada de mais, todos conhecem essa história de cor. O problema é o que está no meio do caminho.

Entre o início de sua ascensão política como líder metalúrgico no ABC paulista, no final dos anos 70, e a eleição para a presidência em 2002, ou seja, durante cerca de 20 anos de sua existência neste planeta, Lula teve tempo e condições de sobra para correr atrás do tempo perdido e superar sua formação escolar deficiente. Em vez disso, preferiu a "escola da vida". Não estudou porque não quis. O motivo foi o seguinte: já uma celebridade nacional, o estudo para ele se tornou algo supérfluo, um artigo de luxo. Mais: cobrar dele um diploma, ou a pura e simples observância às regras da gramática, seria demonstração de "preconceito" e "elitismo" de quem não acreditava que um ex-metalúrgico sem instrução poderia um dia subir a rampa do Palácio do Planalto.

Agora, Lula é o Presidente da República. Como tal, não pode mais se dar ao luxo de desprezar o valor da educação, sobretudo a educação formal, bacharelesca. Mais que isso, como Presidente, ele tem o dever e a obrigação, política e moral, de dar o exemplo, pois cumpre também uma função didática. Isso significa deixar a preguiça de lado e, lápis e caderno na mão, voltar a estudar. Se retornasse aos bancos escolares, Lula estaria dando um exemplo de força de vontade e superação, semelhante ao de outros companheiros seus, como o deputado Vicentinho, que se formou em Direito depois dos 50 anos. Poderia demonstrar, assim, que aquela propaganda, "Sou brasileiro e não desisto nunca", era para valer, e não somente mais uma peça publicitária enganosa de Duda Mendonça e companhia. Com isso, nosso Presidente estaria dando também uma lição de humildade, algo caro para os brasileiros, pois estaria descendo do pedestal e se juntando a tantos milhares de cidadãos brasileiros, tão pobres quanto ele diz ter sido um dia, que, contra todas as adversidades, encaram uma sala de aula visando a ser alguém na vida. Para essas pessoas, ao contrário do Presidente, a educação não é artigo desnecessário, mas um direito inalienável; nem a ignorância é uma moeda política para fazer demagogia: é, isto sim, uma chaga social, uma indignidade.

Difícil imaginar maior incentivo à educação do que este simples gesto pessoal, num país de tantos analfabetos, voluntários ou não. Tenho certeza de que qualquer criança ou adolescente da periferia, ao ver o supremo mandatário da nação sentado no banco de uma sala de aula, se encheria de espírito cívico e seguiria seu exemplo, deixando de lado, como modelo de vida, os cantores sertanejos ou as celebridades instantâneas da TV ou, ainda, os traficantes de drogas. Valeria por muitos programas governamentais, com certeza. Além disso, se começasse por si mesmo, Lula teria muito mais cartaz quando tivesse de falar do assunto. Afinal, com que autoridade um Presidente pode defender, em discurso, a importância e o valor da educação se lhe foi oferecida durante anos a oportunidade de estudar, de se aprimorar intelectualmente, e ele a desprezou solenemente?

Outra coisa: ao voltar à escola, Lula estaria fazendo um grande favor a si mesmo. Além de poupar-se e aos outros de constrangimentos como dizer que o Brasil não faz fronteira com a Bolívia ou que Napoleão invadiu a China, nosso Presidente poderia tornar-se um excelente garoto-propaganda das vantagens da superação individual. Perceberia, com o tempo, que ler, afinal de contas, não é algo assim tão chato como andar de esteira, e que pode ser mesmo um prazer. Vencida a resistência inicial, Lula poderia perceber que a leitura, além de instrutiva, pode ser algo extremamente divertido. Mais interessante, certamente, do que os churrascos ou as peladas com os companheiros na Granja do Torto. Poderia, enfim, descobrir o deleite de ler e reler os clássicos, como Machado de Assis, aliás mulato, gago e epilético, filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes. Se valesse o álibi utilizado por Lula de que sua ignorância decorre de sua infância pobre e sofrida, não existiria a Academia Brasileira de Letras.

Durante muito tempo se discutiu no Brasil o voto dos analfabetos. Os que se opunham a essa medida argumentavam que os mesmos não deveriam ter esse direito, pois careciam do discernimento necessário para fazer suas escolhas, sendo, portanto, facilmente manipuláveis por políticos demagogos e oportunistas. Era uma forma de dizer que o analfabetismo era um problema, e que não poderíamos atingir um certo nível de consciência política a menos que as pessoas tivessem acesso universal à educação. Tal argumento, por elitista, foi, como se sabe, derrubado, e hoje os analfabetos já podem votar. Já podem, inclusive, ser eleitos ao cargo mais alto da República. Lula derrubou esse tabu, assim como derrubou outro mito fortemente incrustado em nosso subconsciente: o de que a ignorância, no Brasil, decorre da pobreza e da falta de acesso à educação formal. Como se vê toda vez que ele abre a boca, a ignorância, no Brasil, pode muito bem ser voluntária.

O Presidente Lula está perdendo uma excelente oportunidade de calar a boca de seus críticos e prestar um serviço inestimável ao País. Está jogando no ralo uma chance de ouro de se redimir perante os milhões que votaram nele, e também perante os outros tantos milhões que, por um motivo ou outro, sempre torceram o nariz para o presidente-operário. Alguém precisa avisá-lo com urgência.

Portanto, correndo o risco de ficar repetitivo, é preciso dizer com todas as letras o seguinte: VÁ ESTUDAR, PRESIDENTE!

quarta-feira, março 21, 2007

DOIS TOTALITARISMOS


"Atrevo-me a dizer que as ditaduras de esquerda são piores, pois contra as de direita pode-se lutar de peito aberto; quem o fizer contra as de esquerda acaba acusado de reacionário, vendido, traidor". (Jorge Amado)

Imaginem a seguinte situação: um grupo de jovens, empunhando suásticas e outros símbolos nazistas, marcha pelas ruas, entoando slogans xenófobos e racistas, venerando Hitler e pregando abertamente o ódio racial e a intolerância contra as minorias (judeus, migrantes, negros, gays etc). Ocupam espaços na mídia, criam sites na internet e conquistam simpatizantes em setores importantes da sociedade, como as artes e a universidade. Reúnem-se, organizam-se em partido político e lançam candidatos nas eleições. Enfim, crescem e agitam, preparando-se para o assalto ao poder.

Assustador, certo? Nenhum cidadão respeitável, cumpridor das leis e pagador de impostos, deixaria de se sentir perturbado ante cena semelhante. Acredito também que qualquer pessoa normal, se se considera verdadeiramente democrata, cogitaria da possibilidade de se proibir tais manifestações, ou, pelo menos, mantê-las sob estrita vigilância policial, como ocorre hoje, por exemplo, na Alemanha. Afinal, a democracia não pode se dar ao luxo de permitir que seus inimigos a utilizem para destruí-la. A serpente deve ser esmagada ainda no ovo.

Agora imaginem a seguinte situação: um grupo de jovens (embora manipulados por gente velha), empunhando bandeiras vermelhas com o símbolo da foice e do martelo (ou uma estrela vermelha, ou um sol amarelo) marcha pelas ruas, entoando slogans bolcheviques e anticapitalistas, venerando Lênin e pregando (abertamente ou não) o ódio entre as classes e a intolerância contra o pensamento discordante. Ocupam espaços na mídia, criam sites na internet e conquistam simpatizantes em setores importantes da sociedade, como as artes e a universidade. Reúnem-se, organizam-se em partido político e lançam candidatos nas eleições. Enfim, crescem e agitam, preparando-se para o assalto ao poder.

Terrível, certo?

Se você não hesitou em responder afirmativamente ao terminar de ler o primeiro parágrafo deste texto, mas vacilou em concordar com essa última conclusão, você não está só. Na verdade, você faz parte da imensa maioria dos que se recusam a ver qualquer equivalência entre duas ideologias totalitárias – o nazi-fascismo e o comunismo –, enxergando mesmo superioridade moral do segundo sobre o primeiro. E isso apesar de você se considerar (e provavelmente ser) um democrata. Como democrata, você sente uma repulsa instintiva pelo nazi-fascismo. Mas busca matizar sua ojeriza (se a tiver) pelas idéias bolcheviques, e crê mesmo que eles, os comunistas, têm afinal um papel a desempenhar para o "aperfeiçoamento" da democracia. Se for este o caso, sinto dizer, mas você está enganado. Terrivelmente enganado.

A nenhuma pessoa razoavelmente inteligente e com um mínimo de honestidade escapa o fato de que os crimes e atrocidades nazistas – como o extermínio de 6 milhões de judeus – constituíram um dos capítulos mais negros da História. No entanto, a mesma repulsa e indignação moral não costumam tomar conta do cidadão comum diante dos crimes igualmente monstruosos dos comunistas. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, quando as democracias do Ocidente se aliaram à URSS de Stálin contra Hitler, muitos levaram a aliança para além de seu significado tático, fechando os olhos voluntariamente para as atrocidades soviéticas. Mais recentemente, a mesma cegueira se revelou após a publicação, em 1997, do Livro Negro do Comunismo, que aponta para o número assombroso de 100 milhões de mortos pelas ditaduras comunistas no século XX – mais do que a soma total das vítimas das ditaduras de direita. Na ocasião, os comunistas e seus simpatizantes questionaram os números apresentados. Diante da avalanche de evidências históricas, porém, passaram a bater em outra tecla: os mortos pelo nazismo caíram vítimas de uma ideologia racista e assassina; já os que morreram sob o comunismo ou eram "burgueses" e "contra-revolucionários" (logo, mereceram a sorte que tiveram, como os camponeses da Ucrânia) ou eram inocentes, mas ainda assim tinham de morrer, pois o ideal que os torturava e matava era, afinal, belo e puro...

Entre nós, esta teoria do "totalitarismo preferido" (na feliz expressão de Jean-François Revel) lançou raízes profundas. Por estas plagas, os comunistas, ao contrário dos nazistas, ainda são levados a sério. Mais que isso: são mesmo considerados ardentes democratas e paladinos da liberdade. Como no Brasil, até 1985, os comunistas foram perseguidos, nos acostumamos a crer que sua luta é pela democracia, um erro crasso. Daí porque um "comunista histórico", como Oscar Niemeyer – um stalinista empedernido – ainda seja reverenciado por sua opção política, e não apesar dela (a propósito, alguém aí já viu uma homenagem pública a um "nazista histórico", por exemplo?). Aqui, comunistas, de carteirinha ou não, são tratados como celebridades, escrevem artigos auto-laudatórios e comparecem sorridentes a programas de TV, onde fazem juras de amor à democracia, e ninguém os questiona. Uma situação realmente surreal.

É preciso dar um basta a essa lengalenga. Os neonazistas são cúmplices morais dos crimes cometidos por Hitler e Goebbels. Os comunistas e seus simpatizantes são cúmplices morais dos crimes de Stálin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot e Fidel Castro. Esta é a realidade.

Qual a origem deste duplo padrão? Afinal, trata-se de duas ideologias totalitárias, baseadas no controle total do Partido-Estado sobre quaisquer aspectos da vida social e individual. Ambos os regimes, o nazi-fascista na Alemanha e Itália e o comunista na URSS e depois no Leste Europeu, China e Cuba, usaram e abusaram do terror e da repressão política, exterminaram populações inteiras em tentativas radicais de engenharia social (no caso do nazismo, visando à "pureza de raça"; no do comunismo, à sociedade comunista perfeita). Em ambos houve culto da personalidade, censura, tortura, campos de concentração. Ambos mataram, exterminaram, trucidaram. Constituíram, enfim, aquilo que Alain Besançon chamou de "A Infelicidade do Século". E, ainda assim, há quem veja virtude em um deles.
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O que explica o duplo padrão moral no tratamento dos dois tipos de totalitarismo? Vamos tentar desvendar este enigma.

Uma primeira explicação, de caráter ginasiano, é que nazismo e comunismo seriam ideologias inimigas. Isto seria evidenciado pela invasão da URSS pelas tropas hitleristas em 1941, pelos milhões de mortos na guerra que se seguiu, pela epopéia de Stalingrado etc. Sem mencionar o Pacto Hitler-Stálin de 1939, que dividiu a Polônia entre os dois ditadores e foi a causa imediata da Segunda Guerra Mundial, o qual revelou a cumplicidade tácita entre os dois regimes totalitários, é preciso lembrar sempre que o fato de serem ideologias concorrentes não elimina do nazismo e do comunismo suas características comuns. A principal delas, qualquer pessoa com um nível intelectual acima do amebiano poderá facilmente perceber, é o desprezo pela democracia, tida por ambos como uma mera formalidade burguesa. É esta, e não o totalitarismo rival, que constitui o inimigo principal das duas ideologias totalitárias. Em outras palavras, os comunistas, parafraseando Arthur Koestler, são antifascistas, mas não são antitotalitários. Logo, esta explicação não cola.

Mesmo assim, como os comunistas sempre dispuseram de um formidável aparato de propaganda a seu serviço, essa visão maniqueísta e simplória se enraizou na América Latina, graças à dicotomia Fidel Castro-Augusto Pinochet. Ambos os ditadores, o cubano e o chileno, se tornaram uma espécie de substitutos cucarachas de seus predecessores alemão e soviético. Como se sabe, Fidel matou muito mais que Pinochet e, ao contrário deste último, que já partiu desta para melhor (ou pior), ainda continua no poder. Entretanto, ainda há quem o considere um "bom ditador", assim como Stálin. Quando Pinochet morreu, no final do ano passado, milhares de pessoas, dentro e fora do Chile, celebraram nas ruas, e várias personalidades brasileiras fizeram declarações afirmando que o falecido não deixaria saudades. Vejamos o que dirão quando morrer Fidel.

Descartados esses argumentos, resta a seguinte explicação: ao contrário dos comunistas, os nazistas não escondem seus objetivos. Afirmam abertamente que querem destruir a democracia e substituí-la por uma ditadura da "raça", não deixando espaço para ambigüidades ou contemporização. Os comunistas, por sua vez, agem de maneira mais sutil, reivindicando mesmo o monopólio da virtude e dos valores democráticos. Ou seja, apresentando-se como aquilo que não são – como democratas, defensores da paz e da liberdade –, os comunistas buscam demarcar seu terreno da ideologia irmã nazi-fascista, ao mesmo tempo em que tentam instrumentalizar a democracia para atingir seus objetivos antidemocráticos. Enquanto estão na oposição, procuram utilizar ao máximo as facilidades da democracia, dizendo-se mesmo seus defensores ferrenhos. Onde quer que conquistaram o poder, porém, trataram sempre, no dia seguinte, de varrer a democracia do mapa, pois esta já tinha cumprido sua função, que era levá-los ao poder. Foi assim onde quer que os comunistas tenham chegado ao governo por meio de eleições, como na antiga Tchecoslováquia, ou mediante uma revolução inicialmente democrática, como em Cuba. E quase foi assim no Brasil e no Chile.

Além disso, ao apelarem para um ideal universal – uma sociedade justa e igualitária, ao contrário do ideal exclusivista de pureza racial dos nazistas – os comunistas dispõem de um álibi perfeito. Os nazistas falam coisas odiosas, como expulsar os imigrantes, limpeza étnica etc. Já os comunistas são mais simpáticos: falam em igualdade, justiça social... O nazismo é execrado – corretamente – por ser uma ideologia bárbara e genocida. O comunismo é igualmente bárbaro e genocida, mas é "romântico". Seus crimes, mesmo que em maior número do que os dos nazistas, serão sempre perdoados, pois estão cobertos pelo véu da utopia. O nazista é quase universalmente condenado - mais uma vez, corretamente - com adjetivos como "implacável" e "desumano". O comunista, por sua vez, é louvado por sua "perseverança" e "coerência". Ainda que tenha praticado roubos e assassinatos, o militante comunista será visto sempre com uma aura de respeitabilidade que o nazi-fascista jamais terá. Afinal de contas, ao contrário dos nazistas, seus crimes foram cometidos com as melhores das intenções... Assim, o assassino sempre terá uma boa desculpa, e poderá mesmo culpar a vítima, acusando-a de tê-lo obrigado a assassiná-la.

Da próxima vez que você deparar com um comunista ou simpatizante do comunismo falando em democracia e direitos humanos, saiba que você estará diante de um grande tolo ou de um grande ator, e que tudo que ele disser a respeito é apenas auto-engano ou fingimento. Puro teatro, nada mais.

quarta-feira, março 14, 2007

LULA É UM BUSH PIORADO


Passado o vendaval da visita-relâmpago – com o perdão da expressão meteorológica – do Presidente norte-americano George W. Bush, creio ser possível tirar algumas conclusões sobre o tipo de relacionamento que o Brasil mantém com os EUA. Mais particularmente, sobre o tipo de relacionamento que os dois Chefes de Governo – Lula e Bush – têm um com o outro. Melhor dizendo, sobre quem é cada um deles, à luz tanto da política quanto da psicologia.

Lula e Bush são almas gêmeas. Sei que a esquerda beata, que elevou aos píncaros da santidade o ex-torneiro mecânico de Garanhuns, enquanto se dedica a satanizar o Bush – a ponto de ostentar cartazes em que o próprio aparece com o indefectível bigodinho à la Hitler – jamais vai concordar com essa frase. Mas se trata de algo óbvio que, como tudo que é óbvio, como dizia Nelson Rodrigues, fica difícil, quase impossível, de admitir.

Foi o próprio Luiz Inácio que, em visita à Casa Branca em 2002, antes mesmo de tomar posse, tratou de anunciar aos quatro ventos a descoberta de uma inesperada (para os lulo-petistas, claro) afinidade entre ele e o Presidente estadunidense. De fato, os dois já viraram coleguinhas, quase amigos de infância. Agora, na última visita que fez ao Brasil, entre uma conversa ou outra sobre etanol, os dois presidentes se derramaram em afagos mútuos. Logo, não me baseio em ninguém mais do que em Sua Excelência em pessoa, o apedeuta-mor, para dizer o que se segue.

Lula e Bush, se irmãos fossem, seriam siameses. Basta atentar para os seguintes detalhes da biografia de cada um:

- Um e outro empregaram meios nem sempre lícitos para atingir seus objetivos: mentiram, enganaram, corromperam;

- Um e outro são conhecidos pelos parcos dotes intelectuais; e

- Um e outro se imbuíram de um papel messiânico.

Tais semelhanças, porém, não nos devem fazer esquecer algumas diferenças básicas. Ei-las:

- Bush é acusado de ter manipulado o resultado de sua primeira eleição, em 2000. Lula não precisa disso, pois se especializou em manipular corações e mentes de milhões de brasileiros por três décadas. No caso dos deputados, sempre ávidos por prebendas em troca de apoio, o mensalão dá conta do recado. E aqui a lógica jurídica se inverte: Lula e seu partido, o PT, são sempre inocentes, mesmo com prova em contrário.

- Dizem que Bush é o Presidente mais ignorante que os EUA já tiveram, e que seu QI seria de 81. Injustiça. Bush, creio eu, sabe onde fica a Bolívia. Além disso, ele arranha um espanhol até razoável. Já Lula não fala nenhuma língua estrangeira. Nem mesmo português.

- Quanto ao messianismo, Bush se atribuiu a missão histórica de transformar dois países – o Afeganistão e o Iraque – em democracias, mudando o mapa geopolítico do Oriente Médio. Lula não ficou atrás: entregou-se de corpo e alma às tarefas de fazer "o melhor governo da história deste país em 500 anos" e, de quebra, ainda mudar a "geografia comercial do mundo". Pelo menos Bush é mais modesto.

Além disso, Bush se tornou uma espécie de besta-fera mundial, principalmente depois de ter mandado invadir o Iraque, em 2003. Desde então, não passa um dia sem que alguém desça o pau no Presidente norte-americano, em especial na sua política externa, acusada de ser unilateral e de ignorar a ONU, que desaprovava a queda de Saddam, assim como desaprova qualquer mudança em regimes igualmente democráticos como o de Cuba e do Zimbábue... Nisso os presidentes brasileiro e norte-americano estão, ao que consta, em lados opostos. É que Lula, ao contrário de Bush, é amigo de Fidel Castro e de Hugo Chávez.

A principal diferença, porém, é que a popularidade de Bush não pára de cair, enquanto Lula está blindado por todos os lados: blindado contra o PT, contra o mensalão, contra o caixa dois, contra Zé Dirceu, Palocci, os dólares na cueca, os aloprados etc. Blindado, inclusive, contra sua própria ignorância, graças a décadas de enganação por parte de intelectuais que acham que criticar um Presidente que negligencia a própria educação é coisa de gente "preconceituosa" e "elitista". Rir das gafes do Bush, aí sim, isso pode.

Bush pode ser um idiota, arrogante, até mesmo um gângster, mas isso não importa. Idiotas, arrogantes e gângsteres, sem falar, claro, imperialistas, eram e serão sempre, nas nossas mentes impregnadas de antiamericanismo primário e terceiro-mundismo estéril, os presidentes da maior potência mundial. Não importa o que eles façam ou deixem de fazer, estarão sempre na berlinda. É assim com Bush, assim como foi com Clinton, com Reagan, Carter e Nixon, e assim será com todos os que um dia ocuparem a Casa Branca. Já Lula pode ser isso tudo também, e muito mais, mas sempre haverá quem o defenda com todas as armas. Bush já está condenado de antemão ao inferno. Lula, como demonstrou a última eleição, tem um lugar cativo no nosso coração.

Como se vê, Lula é um Bush piorado, assim como é um Collor piorado. Dessa vez superamos os gringos. Brasil-sil-sil!

quarta-feira, março 07, 2007

LULA E O CULTO DA IGNORÂNCIA


Já sei, vão dizer que eu sou "preconceituoso", "elitista" etc., pois já virou moda tachar com essas adjetivos qualquer um que desafie o vocabulário "politicamente correto" e aponte para um fato óbvio: que nosso Presidente é, sim, um apedeuta. Isto é: alguém que, tendo tido a oportunidade de estudar, optou, conscientemente, pela ignorância, desprezando solenemente a educação e orgulhando-se, mesmo, da própria incultura. O que é, no mínimo, um dessserviço num País com tantos analfabetos como o Brasil, e, no máximo, uma demonstração de incrível arrogância, pois desconsidera o esforço de tantas pessoas que, vindas de origem até mais humilde do que o próprio Lula, esforçam-se para romper o círculo de mendacidade mental a que supostamente estariam condenadas por sua origem social e batalham para estudar e ser alguém na vida. Essas pessoas, que Lula diz representar, certamente não se identificam com o exemplo de nosso Presidente. Para demonstrar isso, vou apenas reproduzir aqui um texto anônimo que catei na internet, que achei bastante interessante:

"Lulestupidez

Minutos antes do começo da gravação do "Roda Viva" no Palácio do Planalto, o jornalista Paulo Markun aproximou-se do presidente Lula para combinar um derradeiro detalhe. Em meio às palavras de encerramento, o "âncora" diria que estava entregando a Lula uma trilogia com as melhores entrevistas ocorridas desde a estréia do programa da TV Cultura, 18 anos atrás.

Com expressão curiosa, Lula apanhou os livros. Antes que se sentisse logrado, Markun informou que só o primeiro volume fora concluído. Os outros, ainda em preparação, paravam na capa. As páginas estavam em branco. Lula devolveu o que estava pronto e folheou os desprovidos de palavras. "Isso é que é livro bom", comentou. "A gente nem precisa ler". O entrevistado parecia feliz. Os entrevistadores exibiam sorrisos constrangidos.

Ninguém no estúdio improvisado aparentou surpresa. Todos conheciam a aversão de Lula à leitura - qualquer tipo de leitura. "Ler é pior que fazer exercício em esteira", confessou, há tempos, o presidente de um país atulhado de analfabetos, com um sistema educacional em frangalhos, incapaz de absorver multidões de crianças traídas.

Milhões de meninos no Brasil, tão pobres quanto Lula foi (ou ainda mais miseráveis que o filho do agreste pernambucano), enfrentam fome crônica e carências inverossímeis para assimilar conhecimentos. Essas crianças valentes não merecem ouvir do presidente o elogio da ignorância.

Lula nunca leu um livro. Não escreve uma só frase sem derrapar em erros graves de português. Mas os chefes do PT, amparados por intelectuais demagogos, decidiram que um migrante nordestino promovido a líder de massas deve ser dispensado de cobranças elitistas. Lula foi diplomado pela escola da vida. Ganhou o direito de, impunemente, maltratar o idioma e dizer tolices sobre tudo. Pensar o contrário é coisa de conservador, mania de preconceituoso.

Sem trabalhar há quase 30 anos, o presidente teve tempo de sobra para jogar algumas peladas também no campo do conhecimento. Não estudou porque não quis. Não aprendeu lições básicas por pura preguiça. Poderia ter seguido o bom exemplo de companheiros como o deputado Vicentinho. O ex-presidente da CUT, formou-se em Direito já quarentão. Lula não precisa de canudos. É um doutor de nascença. A bordo do Aero-Lula, recusa-se a passear os olhos por duas ou três páginas produzidas (com letras gigantescas) por assessores teimosos. São informações elementares sobre o país onde vai pousar horas mais tarde. Lula despreza até esse punhado de registros históricos, geográficos e econômicos. "Leitura é pior que exercício em esteira".

Já fomos mais rigorosos com gente que enuncia sandices ou escreve besteiras. Rimos do general Charles de Gaulle ao ouvi-lo declarar que "a China é um grande país habitado por milhões de chineses". Acompanhamos com merecidas gargalhadas a performance de Dan Quayle, vice-presidente americano entre 1989 e 1993, quando George Bush pai foi inquilino da Casa Branca. "A perda de vidas é irreversível", disse Quayle. "Minha mãe nasceu analfabeta", empatou recentemente Lula. E completou com mais umas pérola de ignorância: "Fiz uma viagem à América Latina e só lamentei não ter estudado latim com mais dedicação para poder conversar com aquelas pessoas". Quayle derrapounas coisas do sia-a dia. Lula espancou a História ao inventar uma invasão da China por tropas de Napoleão Bonaparte.

Debochamos do presidente Ronald Reagan quando o ilustre forasteiro saudou, em Brasília, o povo da Bolívia. Reagimos com a fleuma de lorde inglês ao discurso em que Lula incluiu a Bolívia entre os países que não mantêm fronteiras com o Brasil. Se tivesse perdido cinco minutos consultando manuais de História, saberia que o Acre foi subtraído à Bolívia. Se tivesse pescado no Rio Paraguai, teria visto logo ali a pátria do amigo Evo Morales.

A carreira política de Quayle terminou numa sala de aula. Ao visitar uma escola, teve a má idéia de ensinar aos alunos como se escreve "batata" em bom inglês. O certo é "potato". O vice de Bush rabiscou um desconcertante "potatoe" no quadro negro. E consolidou a imagem de quem não está preparado para governar coisa alguma. Quando encerraremos a carreira do nosso burro?

Há semanas, Lula chegou para uma reunião sobraçando uma folha de papel com anotações manuscritas. Os garranchos denunciavam que o autor fora o próprio presidente quem escrevera aquilo. Os fotógrafos capturaram os rabiscos com penosa nitidez. Comprovou-se que Lula ignora a grafia de palavras escritas corretamente por crianças de jardim da infância. A maioria dos jornais passou ao largo do escorregão.

Uma boa formação intelectual não faz, necesariamente, um grande estadista. Mas ter um estadista que mal sabe ler e escrever... bem, convenhamos, isso já é demais!
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P.S.: Agora, a pergunta que não quer calar: como um Presidente assim quer "destravar" o País, se é incapaz de destravar a própria língua?

segunda-feira, março 05, 2007

"SOU DE ESQUERDA"


O bafafá que tomou conta do Itamaraty nas últimas semanas por causa da entrevista do Embaixador Roberto Abdenur na qual ele critica a atual política externa brasileira e, principalmente, a resposta da chefia da Casa de Rio Branco, por meio de declarações do Chanceler Celso Amorim à revista Carta Capital, trouxeram à tona algumas questões interessantes. A mais importante delas, na humilde opinião deste que escreve estas linhas, diz respeito à discussão – para mim, bastante reveladora – sobre o caráter ideológico (nesse caso, de esquerda) que estaria sendo dado à diplomacia brasileira sob o governo Lula.

Como escrevi em artigo anterior sobre o assunto, o problema não está nos supostos ou reais motivos que levaram o Embaixador Abdenur a botar a boca no trombone, mas nos argumentos utilizados pelo Chanceler Celso Amorim para descartar qualquer viés antiamericano na atual orientação diplomática brasileira. Mais precisamente, o centro do problema está no fato de ele ter dito, em resposta às críticas que lhe foram feitas, a seguinte frase: "sou de esquerda".

A frase é reveladora, não porque seja exatamente uma surpresa ou algo inusitado – um Ministro do governo Lula, ou qualquer pessoa no Brasil, dizer-se de direita, isto sim, seria algo estranho e surpreendente –, mas porque, se levada a sério, vai contra tudo aquilo que o Chanceler Celso Amorim quer provar – que a política externa brasileira, enfim, não é antiamericana, nem esquerdista. Vou tentar explicar melhor o que quero dizer.

O que caracteriza o esquerdista não é o que ele diz de si mesmo, mas o que ele diz dos seus críticos. Um verdadeiro esquerdista, por mais radical que seja, jamais se dirá antiamericano, e sempre terá uma palavra bondosa para dizer, por exemplo, sobre o povo dos EUA, tentando dissociá-lo do governo de Washington ("sou contra o governo dos EUA, não contra o povo norte-americano" etc.). Basta levantar a menor suspeita de antiamericanismo em suas palavras e atitudes, porém, e a máscara de bom-moço cai por terra: tal acusação só pode vir de "mentes colonizadas", "americanófilos", "indivíduos a soldo do imperialismo" etc. Insista um pouco mais nessa acusação, mostrando fatos e argumentos, e você será brindado com uma saraivada de adjetivos carinhosos, como "lacaio de Wall Street" e "agente da CIA" para baixo.

Pelo mesmo motivo, nenhum esquerdista que se preze ousará falar mal das regras do regime democrático: na verdade, buscará mesmo reivindicar para si a paternidade da própria democracia, posando de paladino das liberdades. Quando essas mesmas regras se voltam contra eles, porém, logo mudam de discurso: o que antes era visto como "defesa da democracia" (por exemplo, a ampliação das liberdades de imprensa e de associação, entre outras), vira "resistências dos setores conservadores e reacionários". Para chegarem ao poder, os esquerdistas não hesitam em usar as facilidades da democracia; uma vez nele, tentam a todo custo miná-la. Foi o que fizeram os comunistas sempre e onde tiveram a oportunidade de fazê-lo.

O que isso demonstra? Apenas uma coisa: que a mente esquerdista, por mais "light" ou moderada que se apresente, funciona em termos ideológicos, de "nós" (o proletariado, o Terceiro Mundo) contra "eles" (a burguesia, os imperialistas ianques). Exatamente o oposto do que diz Celso Amorim a respeito da política externa brasileira.

Portanto, ao se declarar de esquerda, Celso Amorim minou a credibilidade de seus argumentos. Primeiro, porque usou um critério claramente ideológico para classificar as críticas a ele dirigidas. Segundo, porque parece ignorar o que significa ser de esquerda, principalmente em vista dos 100 milhões de mortos pelo comunismo no século XX (não custa nada lembrar: Stálin era de esquerda, assim como Mao, assim como Pol Pot). Tivesse dito que a dicotomia esquerda/direita é uma visão maniqueísta ultrapassada pela História, ou que, em política internacional, o esquerdismo, plagiando Lênin, é uma doença infantil do terceiro-mundismo (como de fato é), então se poderia dizer que são infundadas as acusações de antiamericanismo no Itamaraty. Em vez disso, porém, ele preferiu cerrar fileiras com as hostes esquerdistas.

Pode-se dizer, assim, que Celso Amorim perdeu uma oportunidade de pôr uma pá de cal sobre a suspeita de viés ideológico no Ministério das Relações Exteriores. Suspeita que se reforça ainda mais quando o governo atual mostra tanta má vontade em relação à ALCA e tanta compreensão por ditaduras comunistas como a de Fidel Castro em Cuba, e a candidatos a ditador como Hugo Chávez e Evo Morales, outros notórios esquerdistas. Diante disso, convenhamos, fica difícil não dar ouvidos às críticas do Embaixador Abdenur.

quinta-feira, março 01, 2007

DIPLOMACIA IDEOLÓGICA, SIM


Pela primeira vez desde o governo Jânio Quadros, a política externa brasileira é objeto de intenso debate público. Tudo começou por causa de uma entrevista bombástica do Embaixador Roberto Abdenur, ex-titular da Embaixada em Washington, à revista Veja, há algumas semanas. Resumidamente, as afirmações do Embaixador Abdenur na entrevista foram as seguintes:

a) a política externa do atual governo petista é marcadamente ideológica e esquerdista ("vagamente antiglobalização, anticapitalista e antiamericana");
b) por causa desse viés ideológico, que privilegia as relações "Sul-Sul", o Brasil tem colecionado fracassos, deixando de fazer bons negócios com os países mais ricos;
c) também por esse motivo, há um nítido declínio na qualidade dos quadros do Itamaraty: as promoções estariam sendo decididas pelo critério da afinidade ideológica com a atual direção, e não pela competência profissional. Além disso, os diplomatas estariam sendo constrangidos a se submeter a leituras obrigatórias, de caráter doutrinário de esquerda – uma situação vexatória, principalmente para diplomatas mais antigos.

A repercussão da entrevista foi imediata, provocando, claro, um verdadeiro terremoto na Casa de Rio Branco, um lugar geralmente avesso a polêmicas de todo tipo. Os defensores da atual linha itamaratiana não perderam tempo: a revista Carta Capital (No 433, 28/02/2007), espécie de porta-voz oficioso do governo, apressou-se em publicar reportagem de capa rebatendo as acusações do Embaixador Abdenur, a qual incluiu uma entrevista com o Chanceler Celso Amorim. Subjacente à defesa protocolar dos – supostos ou reais – êxitos da atual orientação diplomática brasileira, incluindo a tão decantada "democratização" do acesso à carreira, o Chanceler baseia seus argumentos na seguinte linha de pensamento:

a) a política externa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva não é antiamericana, nem tem viés ideológico: é, isto sim, uma política altiva e autônoma. Não há doutrinação de qualquer espécie, e a resistência às leituras obrigatórias seria por simples comodismo;
b) as críticas à linha geral do Itamaraty são demonstrações de "certos setores" da diplomacia brasileira ligados à administração anterior (leia-se: ao PSDB), refratários à qualquer mudança. Coisa de "conservadores", portanto;
c) tais críticas e acusações decorrem do descontentamento desses setores com a perda de privilégios e regalias profissionais, de que gozavam no governo anterior. Logo, tudo não passaria de egos feridos e ressentimentos pessoais.

Quem está certo? Pelo que se viu até aqui, ambas as partes parecem ter suas doses de razão. Tirando um certo exagero em dizer que as promoções estariam sendo feitas por afinidade ideológica – se isso for verdade, já tenho pronta minha carta de demissão do Itamaraty, pois prefiro voltar a comer giz em sala de aula a desfilar em alguma parada, seja de esquerda ou de direita –, o Embaixador Abdenur está certo ao dizer que há, sim, uma certa inflexão ideológica da diplomacia brasileira no governo Lula, como demonstra a má vontade com que o atual governo encarou a proposta da ALCA, entre outras razões. Por sua vez, a afirmação de Celso Amorim de que os setores descontentes estariam inconformados com a perda de privilégios, como viagens aos EUA e ao México, também não parece descabida (quem quer que esteja minimamente familiarizado com a realidade do Itamaraty sabe perfeitamente que se trata de uma das maiores – senão a maior – concentração de egos e vaidades da administração pública brasileira). Mas a questão é outra.

A questão é que, ao apontar a ideologização da política externa brasileira sob o governo petista, o Embaixador Abdenur tocou numa ferida profunda da atual administração federal, e provocou um debate que há muito vinha sendo – por medo, timidez, ou falta de oportunidade – postergado. De fato, imprimiu-se, na gestão Lula-Amorim, uma indisfarçável tendência ideológica esquerdista ou, pelo menos, terceiro-mundista, na diplomacia brasileira. Isso fica claro na questão das leituras a que eram submetidos os diplomatas em Brasília: não consigo ver a escolha de um dos livros listados como obrigatórios, o de Moniz Bandeira, como algo dissociado de uma visão ideológica herdada das velhas platitudes marxistas (a menos que se tenha escolhido o título com o objetivo oposto, ou seja, para demonstrar até que ponto vai a paranóia antiamericana). Quem tiver alguma dúvida, recomendo que leia o prefácio do livro, assinado pelo Secretário-Geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, o qual dispensa comentários. A própria direção da Casa tratou de admitir tacitamente esse viés, ao decidir retirar, logo em seguida à entrevista de Abdenur, a obrigatoriedade das leituras, "para encerrar a discussão", segundo Celso Amorim. (algo, aliás, desnecessário: bastaria, na minha opinião, retirar o livro de Moniz Bandeira da lista).

Para complicar ainda mais as coisas, na mesma entrevista à Carta Capital, o Chanceler Amorim acaba dando mais munição a seus críticos. Por exemplo, quando responde a uma pergunta sobre a Venezuela, afirma que, no governo Lula, a aproximação com Caracas "aumentou e foi usada, deliberadamente, para ajudar a consolidar o processo democrático" naquele país vizinho. Visto que Hugo Chávez já anunciou o cancelamento da concessão de funcionamento de uma das principais redes de TV que lhe fazem oposição e acabou de receber poderes praticamente totais da Assembléia Nacional venezuelana (aliás, 100% chavista), a afirmação de Amorim soa, no mínimo, esquisita. Se, por consolidar a democracia venezuelana, o Chanceler entende ajudar Chávez a se reeleger indefinidamente, preparando o terreno para impor aos poucos uma ditadura pessoal, a ponto de até inauguração de ponte ter sido transformada em palanque para que Lula fizesse campanha eleitoral para seu "companheiro" – como de fato ocorreu ano passado –, então, realmente, estamos ajudando a democracia na Venezuela.

Ainda na entrevista à revista, Amorim, perguntado sobre a relação do Brasil com regimes não-democráticos (um eufemismo para totalitários) como o de Cuba, saiu-se com a seguinte frase, usando o exemplo do Oriente Médio: "não basta conversar com os amigos, tem que conversar também com os adversários". Aí é que está. Fosse a ditadura comunista de Fidel Castro um regime "adversário" ou, pelo menos, exótico, como o são, por exemplo, os da China e da Coréia do Norte, vá lá, se poderia falar de pragmatismo. Mas o problema é que Fidel não é bem um adversário de Lula, muito pelo contrário: é um de seus mais íntimos "companheiros", quase um mentor, e o atual Presidente brasileiro não esconde sua admiração pelo regime cubano. A ponto de, sempre que Fidel manda prender dissidentes ou fuzilar alguém, o Brasil adota a política de tapar os olhos na Comissão de Direitos Humanos da ONU (justiça seja feita: essa política é anterior ao governo Lula). O fato de o Chanceler Amorim ter dito, após certa relutância inicial, ser "de esquerda", em nada ajuda a dissipar a impressão de viés ideológico na atual política exterior. Ter Marco Aurélio Garcia como Assessor Internacional da Presidência da República, certamente também não.

Essa última afirmação do Chanceler Celso Amorim – "sou de esquerda" – merece uma análise um pouco mais atenciosa. Ao fazer tal declaração, ele parece querer se distanciar ideologicamente de seus críticos, revestindo-se – e a sua política externa – de uma aura de "progressismo", ao passo que, como ele mesmo diz, "ninguém se diz de direita no Brasil". O próprio Embaixador Roberto Abdenur, segundo a mesma Carta Capital, também engrossa a legião dos que se dizem de esquerda.

Eis algo que sempre me intrigou. No Brasil, dizer-se "de esquerda" virou quase que uma exigência moral, um atestado de pureza e santidade, enquanto que, do lado oposto, "conservador" e "direitista" continuam a ser, entre nós, insultos gravíssimos, verdadeiras ofensas à honra e à dignidade pessoal. Nisso os dois embaixadores não fogem ao lugar-comum historicamente incrustado em nossa mentalidade. Apesar de todas as mudanças que ocorreram no mundo nos últimos vinte anos, dos inumeráveis crimes e atrocidades dos regimes comunistas e do fracasso total do socialismo, ainda é charmoso se dizer "gauche" no Brasil. Mesmo se de instâncias mais altas vierem sinais retóricos de que tal associação automática – esquerda é bom, direita, é mau – é uma construção mental sem base na realidade. O Presidente Lula, como se sabe, já disse publicamente que não é de esquerda. No fim do ano passado, num afago público a Delfim Netto, chegou mesmo a dizer que quem continua de esquerda depois dos 60 anos, certamente tem problemas. Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia têm mais de 60 anos.

Como se sabe, os esquerdistas são pródigos em tentar desqualificar seus críticos, não seus argumentos. Nesse sentido, Celso Amorim, embora recuse a existência de qualquer viés ideológico na diplomacia brasileira, parece seguir à risca a cartilha da esquerda leninista. Não que nosso Chanceler seja algum sinistro capa-preta ou militante bolchevique pronto para saltar das sombras e pular no pescoço do primeiro burguês que encontrar pela frente, nada disso. Mas, ao se declarar de esquerda, em meio a uma polêmica em que a política externa por ele conduzida está sob forte crítica de antiamericanismo, ele se comprometeu com uma visão, sim, ideológica, e não pragmática, do mundo. Uma percepção caolha da realidade, levada a efeito por pessoas que, ao contrário do que dizem Marx e Engels no Manifesto Comunista, costumam esconder seus reais propósitos, camuflando-se debaixo de camadas e camadas de retórica aparentemente anódina e de causas supostamente neutras – os comunistas, por exemplo, tinham por hábito dissimular seus objetivos revolucionários disfarçando-os de defesa da "paz" e da "democracia", quando, como a História do Século XX demonstrou de forma cabal, eram seus maiores inimigos.
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É sobretudo nos adjetivos escolhidos para contrarrestar seus adversários que o discurso esquerdista se revela: ao mesmo tempo em que defende o suposto caráter ideologicamente neutro da política externa do governo Lula, Celso Amorim não hesita em atribuir a seus críticos motivações ideológicas ("é uma reação conservadora"). Ou seja: para defender uma política externa que afirma não ter caráter ideológico, acaba sacando da gaveta velhos chavões esquerdistas – só faltam os indefectíveis "agente da CIA" e "lacaio do imperialismo". Ou, então, busca reduzir as críticas a um simples gesto de ressentimento pessoal de alguém que se acha preterido. Desse modo, tenta-se desviar o foco da questão, atribuindo todo o debate sobre a diplomacia brasileira a uma mera questão de ciúmes. O que é uma forma também de desqualificar o adversário, sem precisar analisar mais a fundo a pertinência, ou não, de suas críticas. É a velha tática de atacar o mensageiro, não a mensagem.

As duas táticas – acusar os críticos de reacionarismo e atribuir a estes inconfessáveis motivações particulares – estão de acordo com a lógica esquerdista: o rótulo ideológico é sempre de quem acusa, não de quem é acusado. As motivações egoístas, também. Como se vê, o passado insiste em bater à nossa porta.