quinta-feira, fevereiro 07, 2013

POR UM MUNDO MENOS BOIOLA*

Certa vez, quando eu tinha uns dez ou onze anos de idade, fui desafiado para uma briga por um menino mais velho e mais forte do que eu. Nem lembro direito o motivo (inveja? medição de forças? uma namoradinha?), só sei que, um belo dia, no intervalo da aula, o moleque, um valentão, do nada me empurrou pelas costas e começou a me provocar e a me xingar. Lembro que, atônito, na hora fiquei com muita raiva, atiçada pelos gritos e urros dos outros meninos, ansiosos para verem correr sangue. Tive muita vontade de reagir às humilhações e, furioso como estava, acho que não seria difícil arrebentar a cara do atrevido. Mesmo assim, e a muito custo, consegui me segurar. Não revidei. Engoli os desaforos e deixei passar.

Durante vários dias fiquei remoendo aquela situação. Não me perdoei por não ter reagido e avançado contra o pequeno troglodita que me empurrava e insultava tão descaradamente, fazendo pose de machão (hoje se chamaria a isso de “bullying”). Com um travo na garganta, as pernas trêmulas de raiva, acho que fiquei uma semana sem ousar olhar-me no espelho, tampouco encarava as outras pessoas, tomado de imensa vergonha de mim mesmo. Não por receio do que os outros coleguinhas iriam pensar de mim – até porque ele era maior do que eu, e já naquela tenra idade eu não dava muita bola para o que os outros pensavam a meu respeito –, mas, principalmente, por minha própria consciência, por uma voz interior que me impelia a defender minha honra e meu orgulho feridos, e que não cessava de sussurrar: “cagão, cagão…”. Senti-me um maricas, um verme, um nada, um frouxo, um covarde.

Hoje, quase três décadas depois, eu me arrependo de não ter reagido à altura. Perdi, agora vejo com clareza, uma ótima chance de vivenciar uma experiência formadora de caráter, extremamente pedagógica. Sei que hoje é fácil dizer, mas eu deveria ter topado a parada. Mesmo correndo o sério risco de levar uma surra – provavelmente eu chegaria em casa com um olho roxo e alguns hematomas –, percebo que a decisão acertada teria sido a de atracar-me com meu agressor, responder suas ofensas e xingamentos com um bom murro na boca ou no estômago. Não porque eu fosse um brigão (pelo contrário, eu era até bem-comportado), mas por uma questão de respeito, ou melhor, de auto-respeito. Compreendo que o que me incomodou não foi o desafio em si, mas o fato de eu ter desistido da luta. Cercado como estava, acuado contra um muro, eu deveria ter enfrentado a provocação, e não fugido dela. Apanhando ou não, o importante é que eu teria mostrado coragem, pois eu poderia dizer que, na hora do perigo, não arreguei, não me acovardei e não fugi da raia. O fato de meu desafiante ser maior e mais robusto somente aumentaria meu mérito. (E antes que digam: não, não estou fazendo "apologia da violência", não me obriguem a apertar a tecla SAP, por favor...)

Recordo esse fato, há muito enterrado no fundo do baú de memórias de minha infância, porque verifico, com pesar, que os tempos mudaram. Há alguns dias, um rapaz que se apresenta como filósofo me fez uma série de insultos gratuitos no Facebook, visando a atingir minha honra pessoal. Omito aqui o nome do personagem, por razões humanitárias e também para não lhe dar a satisfação de achar que tem alguma importância. O que importa não é o sujeito, mas a atitude, ou a falta de atitude, dele. Muito bem. Reagi imediatemente à cafajestada, e exigi provas do que ele dissera a meu respeito ou, então, que se retratasse – o mínimo, creio, que se espera de alguém com alguma honestidade e vergonha na cara. De forma nada surprendente para mim, porém, o dito-cujo recusou o desafio, fugindo da raia. Para justificar sua tibieza, disse que não aceitaria se envolver num “UFC virtual” (como se a coisa toda fosse uma demonstração pueril de “macheza” ou uma disputa pelo tamanho do pênis). Não contente, ainda me lançou mais impropérios, negando-se novamente a apresentar qualquer prova, e saiu correndo. Fugiu da briga, como eu fiz na escola vinte e poucos anos atrás (pior: nesse caso, foi ele o provocador).

No começo até achei graça da situação, e dei boas risadas da falta de coragem do rapaz (ele deve achar que eu sinto "ódio" dele, como se um sentimento tão precioso devesse ser desperdiçado com esse tipo de bocó...). Mas depois percebi que, por trás de todo aquele ridículo, esconde-se algo bem mais sinistro. Não foi exatamente a postura galinácea, de lebre assustada, o que me surpreendeu – eu já esperava que ele agisse dessa maneira –, mas que tal postura seja vista por muita gente hoje não como o que é – leviandade e covardia moral –, e sim como prova de inteligência, até mesmo de superioridade. Ao contrário de mim, o sujeito que me insultou não sente nenhuma vergonha por ter fugido da luta. Pelo contrário: ele xinga e ofende, nega-se a assumir o que diz e ainda há quem veja isso com bons olhos. Mais: ele mesmo, provavelmente, deve achar que se saiu vencedor... Porque encarou o desafio e fez picadinho dos argumentos do oponente? Não: porque jogou lama nele e saiu correndo como um preá!

Só posso concluir, do que está acima, o seguinte: vivemos uma época realmente efeminada, em que coragem e hombridade não significam mais nada. Pelo contrário, deixaram de ser vistas como virtudes, enquanto a pusilanimidade, a covardia e a sonsice passaram a ser valorizadas e louvadas. O simples debate de idéias, a discussão franca e honesta – ou, pelo menos, o simples assumir o que se diz –, parecem ter dado lugar à tergiversação e à canalhice mais abjeta. Pior: com o manto da "inteligência" (!). Verdadeira prova de desvirilização da sociedade, esse tipo de atitude desonesta, que nada mais é do que uma pose, é cada vez mais frequente, potencializada pelas redes sociais.

Tivesse meu adversário virtual aceito o desafio de apontar onde, quando e como eu demonstrei o que ele disse que eu demonstrei, eu não teria problema algum em admitir a superioridade de seus argumentos e louvar sua honestidade intelectual. Tivesse ele, pelo menos, reconhecido que errou e pedido desculpas, eu teria enaltecido sua grandeza em fazê-lo. Mas, em vez disso, ele preferiu agir não como um homem, mas como um rato. Perdeu assim totalmente a dignidade e o pouco de respeito que eu ainda tinha por sua pessoa (o respeito intelectual por ele eu já tinha perdido há tempos; desde, pelo menos, que ele excluiu comentários meus de seu site, por causa de uma palavra de que não gostou – além de tudo, o rapaz é muito sensível...).

Em todas as culturas, desde os gregos antigos, a coragem pessoal, a bravura, constitui uma virtude cantada em verso e prosa. Não somente a coragem física, a coragem no campo de batalha, mas sobretudo a coragem moral. O filósofo Sócrates, ao enfrentar com altivez seus acusadores na Atenas de 399 a.C., preferindo a morte a ter de abjurar suas idéias, talvez seja o maior exemplo dessa virtude de caráter. Era isso o que os romanos chamavam virilitas (virilidade), cuja raiz etimológica é a mesma de virtus (virtude); por sua vez, a palavra grega para coragem, ándria, é a mesma para "homem" (no sentido sexual e também de hombridade, honra). Não deixa de ser irônico, portanto, que um auto-proclamado “filósofo” revele tanto desprezo por essa qualidade,  mais do que masculina, humana. No Brasil, não é comum o debate, nem alguém assumir o que disse ou fez. Para isso, seria preciso, além do que está aí em cima, uma cultura democrática, algo que falta em nossa formação.  

Quando vejo quem me injuriou fugir tão covardemente do debate e fechar-se em copas, bem como um ex-presidente da República esconder-se há mais de dois meses de perguntas incômodas sobre as relações pouco republicanas de uma "amiga íntima" com o poder, é inevitável chegar à conclusão de que algo de muito errado está acontecendo. Somente o mau-caratismo e a safadeza não são suficientes para explicar esse fenômeno. Deve haver algum distúrbio, digamos, físico, na raiz do problema. Quem sabe falta de testosterona. Só isso para explicar tanta boiolice.

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* Se o leitor se incomodou com os termos "boiola" e "boiolice", acreditando tratar-se de uma ofensa de natureza sexual, talvez lhe interesse ler o seguinte texto: http://gustavo-livrexpressao.blogspot.gr/2011/05/chega-de-boiolice.html

Um comentário:

Hadriel Ferreira disse...

Cara, você escreve muito bem. Dá gosto visitar este blog. É uma pena que seus textos sejam raros, mas o blog é seu. Obrigado pelo show de inteligência. Parabéns!